O detalhe que distorce.... - Diários das Terras de Cavaleiros - Parte IV




Os nossos dias por Brar estavam a terminar, era altura de voltar a Ethérnia. Mas antes não podíamos deixar de pernoitar em Onis de Brar, também conhecida como a Aldeia do Manto Eterno porque passava mais de metade de uma época anual coberta por neve. Onis de Brar era uma antiquíssima aldeia, mais antiga que a inicio da que pôs fim à Velha Era.

Era uma aldeia de pastores e local de passagem. Eram várias as suas tabernas, casas de repasto e residenciais que faziam com que se tornasse num local de raros encontros e momentos verdadeiramente inesperados.

A mim e Mizegui juntaram-se Fern e Nure. Fomos jantar a uma das muitas casas de repasto de Onis de Brar. Esta mesmo em frente a um pequeno riacho que desaguava no Rio Dorei. Estava uma noite de tempestade. No prato tínhamos um enorme bife de bisonte dos Prados de Brar. Mizegui, de acordo com os seus princípios naturalistas, ficou-se por uma salada de urze.

Pessoas entravam e saiam, mas uma captou a nossa atenção. No meio da multidão, sozinha numa das mesas, completamente ensopada, de cabelos ruivos e ar desgastado descansava uma mulher que ao seu lado guardava o seu arco e flechas. Mesmo não sendo uma arma fora de uso, nunca tínhamos visto uma guerreira de arco e flechas.

Continuamos a nossa refeição. Alguns momentos após a desconhecida levantou-se, colocou a sua capa e capuz, levantou o seu arco e flechas e dirigia-se para a saída quando se virou na nossa direção e caminhou até nós. Mizegui estava de costas e não reparou no momento. Esta colocou a mão sobre o seu ombro e chamou pelo seu nome:
- Mestre Takasugui? O que o faz parar por terras de Brar? - perguntou a forasteira.

Takasugui era o nome de família de Mizegui. Era raro ouvir alguém chamá-lo por aquele nome. Mas apesar do questionamento direto, Mizegui nem pestanejou, continuou a sua refeição.
Percebendo que Mizegui não queria ser perturbado e que aquela presença o incomodava intervi:
- Forasteira, deve estar enganada, nesta mesa não para ninguém com esse nome. - respondi.
- Devo-me ter enganado, perdoem-me senhores. Sigo então o meu caminho. Fiquem bem. - respondeu a forasteira saindo de seguida.
- Mizegui, a forasteira conhecia-te. Porque não  respondeste? Perguntei.
- Aquela era Poesis, companheira de caminho. Fomos ambos aprendizes de Ant Elael no Templo das Lágrimas de Sangue. Foi o meu ponto fraco durante muito tempo. - respondeu
- O teu ponto fraco? Como assim? - questionou Fern.
- Ant Elael recomendava que durante o treino no concentrássemos nas nossas tarefas e não deixássemos que relacionamentos paralelos nos demovessem da nossa missão. Com Poesis não foi possível. Durante algum tempo ainda conseguimos, mas foi inevitável o corte para o bem de ambos. Pelo menos eu achei que foi para o bem de ambos. Quando terminamos o treino e passamos a Mestres, pensava que estávamos preparados para recomeçar e assim o fizemos. A relação nunca foi pacífica, mas raramente discutíamos. Tínhamos demasiado treino para nos deixarmos levar por caminhos fáceis como o ciúme, a mentira ou discussões inúteis. Nessas alturas o silêncio vencia sempre. Quando reparamos estávamos a viver uma relação de treino e menos uma relação de duas pessoas que se queriam e que tinham escolhido o mesmo caminho de descoberta e partilha comum. A relação tinha-se tornado numa arena de bons momentos, eficácia e harmonia para a missão. Sem querer confundimos a nossa missão com a nossa relação. Depois nunca nenhum foi capaz de admitir onde realmente estava mal. Na realidade, nunca tivemos dúvidas que gostávamos um do outro, mas estávamos demasiado cegos pelo treino de cada um que nos limitamos a adaptar aos défices que cada um permitia que o outro preenchesse. Há detalhes que podem distorcer tudo e este foi um deles. Para mal dos meus pecados, durou uma vida inteira... - respondeu com um ar de tristeza como nunca havíamos visto nele.

Fern, o mais velho e vivido de todos nós, que já se havia casado por duas vezes surpreendeu-nos com as suas palavras:
- Há detalhes que distorcem tudo... no final importa perceber é se são, realmente, apenas detalhes?